Artur Chinelato
No dia 25 de dezembro de 2012 recebi uma correspondência eletrônica do Sr. Arlington Pereira Rea, da localidade de Santa Ana, província de Yacuma, do estado del Beni, Bolívia. No texto. dizia que era produtor de gado de corte, leitor da revista Balde Branco e que gostaria de investir na atividade leiteira, a começar pela aquisição da propriedade rural e pedia “consejos de implantacion”.
Solicitei que me dissesse qual a região onde queria implantar a propriedade leiteira. Respondeu-me que gostaria de comprar uma área em uma das margens da estrada que liga Santa Cruz de La Sierra e La Santísima Trinidad, mais conhecida como Trinidad del Beni, região tropical e plana do país, com altitude variando de 400 a 130 m, respectivamente, rica em recursos hídricos e com temperatura e umidade elevadas, semelhantes às condições climáticas reinantes em Rondônia.
Comentou ainda que achava ser esta a forma correta de começar, “porque es como um papel em blanco, donde pudeo poner las cosas correctas em el lugar que tienen que estar. Eso no me preocupa. El trabajo es lo de menos. Yo solo quiero comenzar com el pie derecho”.
Trocamos mais correspondências, e numa delas, no início de março de 2013, convidei-o para visitar propriedades do Projeto Balde Cheio, visto que sua intenção era adquirir uma extensão de terra bem maior que a necessária para a produção dos sonhados 500 litros diários. Escrevi que uma boa oportunidade para que esse contato ocorresse seria entre os dias 22 e 27 de abril de 2013, quando visitaria alguns municípios no Estado do Rio de Janeiro, e que ele teria a oportunidade de ver propriedades encravadas em montanhas íngremes (região serrana), propriedades estabelecidas em morros suaves e baixadas (região Noroeste) e propriedades em áreas planas (região Norte).
Maurício Salles, da Faerj/Senar-RJ, coordenador do Balde Cheio na região, enviou o roteiro de visitas. Com os detalhes acertados quanto aos horários de chegada (minha e do Sr. Arlington), local de encontro, transporte e lista dos hotéis, só nos restava esperar. O sr. Arlington chegou a São Paulo no sábado (20 de abril), onde visitou parentes, e na 2ª feira (22 de abril) ficamos de nos encontrar no aeroporto Santos Dumont na cidade do Rio de Janeiro. Um nevoeiro atrasou por algumas horas nosso encontro. Nada que o demovesse de conhecer o “Balde Lleno”.
Contratempo à parte, rumamos para o município de Carmo, na região Serrana, onde o visitante teve o primeiro choque. No Sítio Recanto dos Guimarães, somente se desce ou somente se sobe, dependendo de onde esteja. O proprietário Luiz Fernando Lima Guimarães, assistido pelo veterinário autônomo Tiago Sertã Passos, estava produzindo cerca de 250 litros/dia, ocupando intensivamente perto de 3 ha dos 40 ha totais, sendo úteis pouco mais da metade da área, desejando atingir 500 litros.
Admitiu ter visto situações tão
distintas em relação à atividade
leiteira, num aprendizado que não
havia preço que pagasse
|
Na visita seguinte um encontro emocionante com os irmãos Clésio e Nilson da Silva e o vizinho Jair, que nunca esperavam ter a visita de um estrangeiro na propriedade cravada no alto de uma serra em Trajano de Moraes, de difícil acesso e só não esquecida por Deus e pelo zootecnista autônomo Alexandre Bucksy. Em menos de dois anos de trabalho conseguiram que a produção saltasse de 30 a 40 litros ordenhados a fórceps de uma vacada que, pelo tipo e ferocidade, tinha chegado ao Brasil nas caravelas da época do descobrimento, para 130 a 140 litros ordenhados de vacas leiteiras.
No município de Aperibé, já em direção à região Noroeste e às margens do Rio Paraíba do Sul, o Sr. Arlington teve contato com o Sítio Sapucaia, conduzido pelos irmãos Samuel, Rogério e Nivaldo Rodrigues da Silva. A assistência técnica estava sob responsabilidade do veterinário autônomo Gustavo Martins Mafort. Em uma área total de 3,7 ha, sendo úteis 3,3 ha e gleba intensificada de 2,8 ha, produziram, como média em 2012, 185 litros diários ordenhados de 10 vacas de um total de 12. Em um rebanho composto apenas por vacas, obteve fluxo de caixa da ordem de R$ 17.394, ou seja, quase R$ 1.500 por mês. Só não foi maior devido aos investimentos que somaram pouco mais de R$ 20.000, demonstrando a confiança do produtor na atividade leiteira. Mais um detalhe que chocou o visitante: a propriedade é arrendada por ciclos de dois anos a um preço de R$ 275 mensais.
Outras propriedades em começo de trabalho foram visitadas também, mas para encerrar a viagem, cito três sítios na região Norte do Estado do Rio de Janeiro, com relevos planos como a região de interesse do boliviano.
O Sítio Boa Vista em Quissamã, pertencente aos irmãos Carlito e Carlos de Souza, assistidos pelo veterinário autônomo Roberto Carneiro, iniciou sua jornada dentro Balde Cheio em meados de 2011, quando sua produção era zero litro de leite por dia. As quatro vacas, ditas leiteiras, estavam secas. Com muito trabalho numa propriedade de área total de 6 ha, sendo 5 ha úteis e nenhuma disponibilidade de dinheiro, obtiveram recursos fora da porteira, como pedreiros, para garantir o sustento das famílias, e um minguado capital para investimento. No dia dessa visita à produção registrava 70 litros/dia com novas vacas e um tanque de expansão usado de 500 litros, ambos comprados a prazo. Para todos falaram que a meta agora era encher o resfriador de leite com a produção de dois dias.
O Sítio Nova Aliança, localizado no Assentamento Cantagalo em Rio das Ostras, cujo proprietário Leandro Rodrigues Barreto foi algumas vezes do céu ao inferno devido à passagem desastrosa de técnicos não comprometidos com o trabalho, demonstrou ao visitante a dificuldade em encontrar gente séria para assessorar os produtores. Em meados de 2012, Leandro iniciou o regresso ao céu em definitivo com a chegada de um qualificado assessor, o técnico em agropecuária autônomo Christie Garcia Barreto. Numa área total de 13 ha, sendo úteis pouco menos de 10, estava produzindo 300 litros/dia ordenhados de 15 vacas em lactação de um total de 19 vacas no rebanho. Quer e irá chegar a 1.000 litros diários. É só uma questão de tempo.
A cereja do bolo ficou por conta da visita ao Sítio Bastião em Dores de Macabu, distrito de Campos dos Goytacazes, pertencente a Cléber Pessanha da Silva, assessorado pelo técnico em agropecuária autônomo João Manoel D’Ângelo Neto. Numa área total de 2,4 ha sendo intensificada pouco menos de 1,5 ha, estava produzindo 175 litros por dia, tendo adquirido recentemente um tanque para resfriamento de leite com capacidade para 1.000 litros. A margem bruta nos últimos 12 meses (abril/2012 a março/2013) foi de R$ 34.228, ou seja, quase R$ 3.000 mensais. Se isso não é um trabalho de inclusão social, via geração de renda, então desconheço tal conceito.
Fim da viagem, e o Sr. Arlington agradeceu muito e disse que voltava à Bolívia com outra mentalidade, e me questionou se muitos produtores, técnicos, professores universitários, pesquisadores e líderes da cadeia produtiva do leite já haviam feito o que ele acabara de fazer, isto é, passar uma semana vendo situações tão distintas em relação à atividade leiteira, num aprendizado que não havia preço que pagasse. Com vergonha de admitir que esse tipo de situação ocorrera em uma quantidade que se poderia contar em apenas uma das mãos, calei-me.
Artur Chinelato de Camargo é pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, de São Carlos-SP - e-mail: artur.camargo@embrapa.br.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário