Artur Chinelato
Normalmente no futebol, a camisa número 10 identifica um talento diferenciado de alguém com um potencial acima da média. Muitos craques contribuíram para a criação da mística dessa camisa, mas nem todos que a vestiram tiveram o mesmo sucesso. Muitos não suportaram seu peso. As expectativas e as cobranças que recaem sobre quem ousa encarnar o número 10 podem levar muitas pessoas a caminhos solitários e sem volta.
Na atividade leiteira, como na vida, ninguém chega ao sucesso sozinho. É preciso ter conhecimento, sabedoria e humildade para que o trabalho em equipe prevaleça. O potencial individual só aparece quando o esforço do grupo permite. Isso serve para mostrar que nem o produtor de leite, nem o técnico que atua na extensão rural, nem o professor e tampouco o pesquisador conseguirão sucesso se não trabalharem juntos, em sintonia e com o mesmo objetivo.
São comuns histórias de produtores que conseguiram avanços em suas propriedades pela orientação e aplicação do conhecimento. No entanto, infelizmente, são também comuns os casos de produtores que, uma vez alçados a um novo patamar de desenvolvimento, passaram a se sentir poderosos, concluindo que não necessitavam do apoio de mais ninguém. Esses produtores se sentiram onipotentes, passando inclusive a prestar assistência técnica a outros produtores, ministrar palestras e realizar pesquisas em suas propriedades, alçando voos cada vez mais audaciosos. Não é preciso dizer que quase todos esses voos terminaram em grandes tragédias financeiras em suas propriedades.
O maior desafio do extensionista
é manter o produtor informado
e preparado para agir diante
das constantes mudanças
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Uma das explicações plausíveis talvez esteja relacionada ao fato de o produtor vivenciar algo inusitado para ele: ganhar dinheiro. A impressão que dá é de um consumo contido por anos e anos na represa da amargura e do ressentimento e, de uma hora para outra, a barragem se rompe e o produtor quer comprar tudo em um só dia. Com o dinheiro, vem a sensação de poder, somado ao fato de as pessoas que visitam sua propriedade “encherem a bola” dele, afirmando que ele é o máximo, que sua propriedade é fantástica, que ele já sabe tudo, e assim por diante.
Esse produtor, além de acreditar nisso, passa a achar que o técnico, que o ajudou a construir essa nova realidade, só vai à sua propriedade para “encher o saco”, cobrando responsabilidades e tarefas combinadas. O tempo e a intimidade entre eles, própria do convívio próximo, os torna inimigos implacáveis, e tanto o produtor quanto o técnico que assiste a propriedade precisam estar atentos aos males implícitos nesses dois aspectos, mantendo certa cerimônia na convivência. Do contrário, o produtor só esperará a oportunidade para colocar o técnico na marca do pênalti e no momento propício, geralmente após uma cobrança mais ríspida de suas responsabilidades, não hesitará em chutar a bola – no caso, o técnico –, para o espaço, perdendo o gol, a partida e o campeonato.
O problema é que a camisa 10 não é vestida somente por alguns produtores. Vários técnicos da extensão rural, professores e pesquisadores também experimentaram a camisa 10 e gostaram. Distanciaram-se do mundo real dos produtores, se achando superiores. Esqueceram que a maioria dos produtores tem muito a ensiná-los. Perderam a humildade que os mantinha no mundo real e hoje vivem à procura de alguma solução milagrosa e imediata que possa lhes trazer alguma sensação de serventia e realização.
Falta, em todos esses casos, a percepção de que o conhecimento é dinâmico, que aquilo que aprendemos ontem talvez não seja o mais indicado a ser aplicado hoje. Manter-se informado e não perder a humildade é o segredo. O grande desafio do professor e do pesquisador é não se afastar do objetivo principal de suas existências, que é levar o bem-estar às pessoas, no caso, os produtores de leite.
O maior desafio do extensionista é estar atualizado e conectado com a realidade, de maneira a manter o produtor informado e preparado para agir diante das constantes mudanças. Quem fará a ponte entre a pesquisa e a produção, senão a extensão rural? No Brasil a tentativa de fazer a ligação direta entre o pesquisador e o produtor, sem a participação do técnico ligado à extensão rural como elo fundamental, tem servido apenas para gerar um imenso acervo de informações que só ocupa espaço nas bibliotecas das instituições de ensino e pesquisa, enquanto muitos produtores ainda continuam produzindo leite como no início do século passado.
O principal desafio do produtor, além de manter a humildade, é gerar renda em sua propriedade, aplicando de maneira consciente os conhecimentos que lhe são transmitidos, construindo, por meio de um trabalho sério e diário, os rumos de sua propriedade, que, com isso, propiciará uma vida digna, com qualidade e conforto para sua família, permitindo que seus filhos tenham saúde e possam se aprofundar nos estudos. Essa é a obrigação de qualquer pai ou mãe responsável. A camisa 10 pode ser usada por uma pessoa talentosa e dedicada, mas somente trará benefícios aos humildes de coração.
Artur Chinelato de Camargo é engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, de São Carlos-SP. A ideia original deste texto é de Marcelo Rezende, que também participou de sua redação. Mais informações: e-mail artur@cppse.embrapa.br.
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