terça-feira, 21 de maio de 2013

Quem sai na chuva é para se molhar

Artur Chinelato

Recebi, dias atrás, um e-mail de um assinante de Balde Branco. Manterei o anonimato do mesmo por motivos óbvios, mas utilizarei sua mensagem eletrônica por considerar uma oportunidade ímpar de aprendizado para todos, incluindo, para mim.
Produtor de leite ausente, como inúmeros existentes no Brasil (1º comentário), visita sua propriedade esporadicamente devido ao fato de ter outra atividade profissional no meio urbano. Após elogios no início de seu e-mail em relação ao Projeto Balde Cheio, contou que assumira a propriedade uns cinco anos atrás substituindo seu pai, que lutou com a atividade leiteira por cerca de 50 anos.
Comentou que, apesar do convívio com sua família, agricultores por vocação, nunca se envolvera com os negócios da fazenda produtora de café (principal atividade), sendo que nas áreas impróprias a tal lavoura, seu pai criava gado de corte e de leite. A Nova Zelândia, cuja extensão territorial é semelhante à do Estado de São Paulo, destina suas terras mais planas à atividade leiteira, sendo responsável por pouco mais de 30% do leite vendido no Planeta (2º comentário).

Continuando, o produtor relatou que, por falta de conhecimento, sua primeira atitude foi procurar por técnicos que pudessem auxiliá-lo. Atitude correta por parte daqueles que estão querendo levar a sério a atividade leiteira (3º comentário). Procurou técnicos do Balde Cheio, como poderia ter procurado técnicos de outros projetos existentes, que também têm no desenvolvimento da pecuária leiteira o principal objetivo (4º comentário).
Afirmou que pelo fato de a propriedade não estar localizada em uma bacia leiteira de expressão, os três técnicos contatados estipularam valores para a assistência técnica, que, segundo ele, consumiria a quase totalidade do faturamento da produção da fazenda, em torno de 100 litros diários com média de 3 a 4 litros/vaca/dia. Por dedução, concluí que o rebanho em lactação oscilava entre 25 a 33 vacas.
Ao responder ao seu e-mail, quis saber o nome dos técnicos contatados para verificar se realmente foram qualificados por nós, pois existem muitos que dizem pertencer ao Balde Cheio, mas que na verdade são piratas que navegam pelos oceanos da atividade leiteira (5º comentário). Como sei o nome de todos os participantes do projeto, basta entrar em contato comigo (6º comentário). Ao responder ao meu questionamento, constatei que um deles não fazia parte do grupo de técnicos capacitados, outro fizera parte do trabalho no passado, e apenas o terceiro era um técnico gabaritado para aplicar a metodologia do Balde Cheio.

Fazendo as contas, 100 litros de leite produzidos por dia a um preço de R$ 0,80/litro de leite representam R$ 80 diários que, ao final do mês, perfazem R$ 2.400. Como o produtor alegou que os técnicos pediram para prestar o serviço de assistência um montante que consumiria quase todo o valor da produção, presumo que a pedida tenha ficado em torno de uns R$ 2.000 por mês. Se minha conta estiver correta e minha suposição também, trata-se de um abuso (7º comentário).
O que os técnicos autônomos costumam cobrar é algo em torno de meio salário mínimo por uma visita de um período (manhã ou tarde) por mês, livre de despesas com o deslocamento (8º comentário). Se a visita for ao longo de todo o dia, é evidente que o valor será de um salário mínimo por mês. Esse valor pode variar para mais ou para menos de acordo com a situação da propriedade e a combinação entre as partes, sendo a negociação livre e desejada, podendo inclusive ser gratuita nos casos de pequenas propriedades sem nenhum recurso, mas com muita vontade de crescer.
Neste último caso, o técnico ao decidir trabalhar gratuitamente com o produtor estará demonstrando que nele acredita, por mais difícil que seja a situação do mesmo (9º comentário). Concluindo essa questão, cito a frase de Derek Bok, ex-reitor e ex-diretor da Faculdade de Direito de Harvard, Massachusetts-EUA, por mim adaptada: “Se você acha o conhecimento caro, experimente a falta dele”.

Reportagens não devem ser lidas
como manuais. Se assim fosse,
não precisaríamos de agrônomos,
veterinários, zootecnistas...
Voltando à carta eletrônica, o produtor escreveu que não acertou com ninguém e resolveu fazer por conta própria assumindo sua posição de autodidata. Erro grave (10º comentário). Decidiu seguir as sugestões contidas nos casos de sucesso que Balde Branco leva mensalmente aos seus leitores. As matérias divulgadas na citada revista, como em qualquer outra publicação do setor, visam sacudir, desacomodar, estimular, entusiasmar, motivar as pessoas a procurarem por ajuda.
São reportagens que tratam de assuntos variados, condições financeiras e sistemas de produção distintos, com animais de raças distintas, em solo com fertilidade e relevo distintos, e assim por diante. As matérias que saem nessas revistas, como em qualquer publicação de qualquer segmento da economia, não são manuais a serem seguidos. Se assim fossem, não precisaríamos de agrônomos, veterinários, zootecnistas, médicos, engenheiros, advogados etc. Bastava comprar uma revista especializada e segui-la ou, então, consultar o Dr. Google (11º comentário).

O objetivo do produtor, segundo seu relato, era atingir a produção de 400 litros diários com umas 40 vacas em lactação (média de 10 litros por vaca por dia) de um total de 50 a 55 vacas. Seu desejo, portanto, era ter entre 73 e 80% de vacas em lactação, no que estaria errado, pois a meta de todo produtor de leite profissional é manter, em média, 83% de vacas em lactação (12º comentário). Essa “pequena diferença no objetivo” causaria “um deixar de ganhar” da ordem de R$ 4.380 a R$ 16.500 por ano, considerando o preço do leite a R$ 0,80/litro (13º comentário). É só fazer as contas!
Acertou na mosca (14º comentário) em dado momento de sua correspondência ao afirmar que “sem comida não tem produção”, mas pisou na bola ao relatar que começou estabelecendo 28 piquetes de 1.850 m2 (área total de 5,18 ha) para um rebanho em produção no início do trabalho de 25 a 33 vacas. Isso significa uma lotação de 4,2 a 6,4 vacas por hectare, muito abaixo da lotação mínima de 10 vacas/ha, com que os técnicos do Balde Cheio trabalham no primeiro ano de atuação (15º comentário).
Para este rebanho em lactação deveria ter intensificado uma gleba de no máximo 1,2 a 1,6 ha. Essa menor área permitiria uma adubação mais intensiva e um resultado melhor (16º comentário). Para chegar a esses números dividi o número de vacas em lactação por dois, ou seja, trabalhar-se-ia no primeiro ano com metade das vacas em produção visando reduzir as despesas iniciais e atenuar os efeitos dos erros comuns no processo de aprendizagem do manejo de pastagem (17º comentário).
Relata ainda que antes do primeiro pastejo, o mombaça sofreu um ataque de lagartas que quase o dizimou. Insistiu, e quatro meses depois de implantado, iniciou o pastejo rotacionado. No entanto, comenta: “Minha expectativa de conseguir alguma melhoria na média diária de produção, como sempre li na revista Balde Branco, foi frustrada. Passados seis meses de uso dos piquetes, continuava tirando 4 litros/vaca/dia.” A informação isolada da média de vacas em lactação no curral pouco acrescenta numa análise crítica da atividade leiteira. Ela depende de fatores como nutrição, estágio de lactação, bem-estar dos animais, sanidade, manejo e potencial genético de produção. Avaliar uma propriedade pela média de curral não é uma atitude profissional (18º comentário).

“Mas, sem genética não adianta dar comida, diziam”, comentou o produtor. O fato de ter acrescentado “diziam” significa que o ouvido estava aberto a qualquer tipo de comentário e de quem quer que fosse (19º comentário). O Brasil aproveita algo em torno de um terço do potencial de suas vacas leiteiras (20º comentário). Essa é uma estimativa particular, extraída de minha vivência no setor leiteiro.
Propriedades que passaram a estabelecer conceitos de uma produção leiteira intensiva, principalmente a pasto, descobriram que suas vacas estavam subutilizadas, não sendo necessário substituir o rebanho no início do trabalho. Ao descobrirem a injustiça que estavam cometendo contra suas vacas, por delas duvidarem, vários produtores têm caído de joelhos ao chão e pedido perdão às mesmas (21º comentário).
“Saí atrás de melhorar meu plantel e acabei investindo em 15 vacas Holandesas de um italiano (nacionalidade alterada), que ia parar com a produção. Não porque a atividade não fosse lucrativa, mas porque seu filho ia se mudar para Buenos Aires (cidade alterada)”. Não sei se o missivista foi verdadeiro ou irônico. Permanece a dúvida (22º comentário). Quanto ao fato de ter adquirido vacas Holandesas, não significa que sejam boas ou ruins. Raça não define essa condição (23º comentário).
“Vieram as Holandesas do italiano e a média não saiu dos 4 litros/vaca/dia”. Aqui vale o mesmo comentário feito anteriormente sobre média de curral. “Disseram que era porque as Holandesas estavam acostumadas com a ordenhadeira mecânica e nós tirávamos o leite à mão”. Novamente o “disseram”, e agora acompanhado de um comentário sem sentido, uma bobagem imensa (24º comentário).

O desabafo continuou: “Eu não via como justificar o investimento numa ordenhadeira com uma produção tão baixa, mas me enchi de coragem (sic! - 25º comentário) e comprei uma ordenhadeira balde ao pé de um produtor que estava vendendo, não porque a atividade não fosse lucrativa, mas porque ele queria comprar uma de maior capacidade.” Novamente, não sei se o produtor foi verdadeiro ou irônico.
Um equipamento novo para efetuar a ordenha mecanizada tipo balde ao pé com dois conjuntos de teteiras de uma marca de respeito no mercado está custando por volta de R$ 7.500. Um equipamento usado não deve ser adquirido por mais do que a metade do valor de uma “zero quilômetro”, ou seja, no máximo, R$ 3.750. Se o investimento tivesse que se pagar em apenas um ano, significaria que cada dia teria custado R$ 10,27 ou 12,8 litros de leite. Não vi nenhum ato de coragem nesse investimento (26º comentário).

A média de produção depende
de nutrição, estágio de lactação,
bem-estar das vacas, sanidade,
manejo e genética
“O início dos trabalhos com a ordenhadeira não conseguiu aumentar nossa média diária”. De novo a tal da média de curral, mas esse fato ao menos comprovou a bobagem do: “disseram que as vacas não produziam mais porque a mungidura estava sendo feita manualmente” (igual ao 24º comentário).
“Três meses depois, a bomba de vácuo pifou e não havia como consertá-la. Vamos ter de comprar outra bomba, que vai custar mais do que pagamos pela ordenhadeira. Voltamos para a munheca”, citou o produtor, dando continuidade à saga da falta de planejamento e sobra de amadorismo (27º comentário).
“Concomitantemente a estas agruras tentamos melhorar o quociente de vacas em lactação. Para isso tentamos a inseminação artificial. O quociente continuou entre 40 e 50%”. Meu Deus, que tragédia grega! (28º comentário).
“Disseram” – provavelmente numa conversa de boteco ou no balcão da cooperativa, onde vários ‘especialistas’ se encontram (29º comentário) – “que não estávamos conseguindo fazer a detecção do cio corretamente. Voltamos para o touro Holandês, que além de tudo, é bravo e ataca quem se aproxima do curral”. Fico imaginando a cena! (30º comentário). Só faltou “alguém” sugerir ao produtor o uso de IATF (inseminação artificial em tempo fixo) e da ocitocina na ordenha, para completar o circo de horrores (31º comentário).

Para concluir o relato, escreveu que “hoje estamos com 30% de vacas em lactação e nossa média caiu para 3 litros/vaca”. Quanto tempo e dinheiro jogados no lixo (32º comentário). Lembrei-me novamente de Derek Bok e sua frase, agora sem adaptações: “se você acha a educação cara, experimente a ignorância”.
Ao despedir-se, questionou-me: “Contei-lhe toda essa longa e triste história somente para lhe fazer uma pergunta: de onde você tira tanto entusiasmo? Só tenho uma explicação: seu sustento não depende da produção de leite”. Tomou? Quem sai na chuva é para se molhar (33º comentário).
Realmente eu não sou produtor de leite. Trabalho na Embrapa, e quem me paga é o contribuinte, via Governo Federal (34º comentário). No entanto, conheço muitos produtores de leite que têm sucesso na atividade leiteira. O próprio missivista conheceu dois que ganhavam dinheiro com o leite: o italiano e o que lhe vendeu o equipamento de ordenha. Se quiser visitar outros produtores pelo Brasil afora é só entrar em contato comigo. Cito apenas um, o Sr. Leonildo Romero Gasquez e sua família, que no Sítio Nossa Senhora Aparecida, de 21,7 ha, em São Francisco-SP, vive muito bem com a renda oriunda exclusivamente da produção leiteira. Se você não acredita, vá visitá-los (35º comentário). Entre em contato com o técnico Valdecir Segura Pinotti pelo telefone (17)9745-3958, que o assiste continuamente desde 2003 e trabalha na Casa da Agricultura de São Francisco, para agendar uma visita. Um conselho: leve consigo um anteparo para segurar o queixo.



Artur Chinelato de Camargo é pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, de São Carlos-SP; e-mail:artur.camargo@embrapa.br.

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